" Conto: Cartas para Hermengardo"
- Psicóloga Ana Maria Favero
- 28 de nov. de 2024
- 3 min de leitura
Atualizado: 29 de nov. de 2024

Clarice Lispector
QUINTA CARTA
Meu querido Hermengardo,
Em verdade eu te digo: felizmente tu existes. A mim me bastaria apenas a existência de uma criatura sobre a terra para satisfazer o meu desejo de glória, que não é senão um profundo desejo de vizinhança. Porque eu me enganei quando há tempos imaginei como real minha antiga vontade de "salvar a humanidade", malgré, ela.
Agora só desejo mais alguém, além de mim mesma, para que eu possa me provar... E nessa volta para Idalina compreendi também que tão belo e tão impossível como aquele outro sonho é o de tentar salvar-se a si mesmo. E se é tão impossível, por que então me encaminhar para esta nova cidadela que seria agora uma pobre mulher perturbada? Não sei. Talvez porque é necessário salvar alguma coisa. Talvez pela consciência tardia de que nós somos a única presença que não nos deixará até a morte. E é por isso que nós amamos e nos buscamos a nós mesmos. E porque, enquanto existirmos, existirá o mundo e existirá a humanidade. Eis como, afinal, nós nos ligamos a eles.
E tudo isso que eu estou dizendo é apenas um preâmbulo qualquer que justifique meu gosto de te dar tantos conselhos. Porque dar conselhos é de novo falar de si. E cá estou eu... Mas, afinal, eu posso falar com a consciência em paz. Nada conheço que dê tanto direito a um homem como o fato dele estar vivendo.
Este preâmbulo também serve por uma desculpa. É que percebo, mesmo através das palavras mais doces que o milagre de respirares me inspira, o meu destino de jogar pedras. Nunca te zangues comigo por isso. Uns nasceram para lançar pedras. E afinal (começa aqui minha função), por que será mau lançar pedras, senão porque elas atingirão coisas tuas ou dos que sabem rir e adorar e comer?
Uma vez esclarecido este ponto e uma vez que me permite jogar pedras, eu te falarei da Quinta Sinfonia de Beethoven.
Senta-te. Estende tuas pernas. Fecha os olhos e os ouvidos. Eu nada te direi durante cinco minutos para que possas pensar na Quinta Sinfonia de Beethoven. Vê, e isto será mais perfeito ainda, se consegues não pensar por palavras, mas criar um estado de sentimento. Vê se podes parar todo o turbilhão e deixar uma clareira para a Quinta Sinfonia. É tão bela.
Só assim a terás, por meio do silêncio. Compreendes! Se eu a executar para ti, ela se desvanecerá, nota após nota. Mal dada a primeira, ela não mais existirá. E depois da segunda, o segundo não mais ecoará. E o começo será o prelúdio do fim, como em todas as coisas. Se eu a executar ouvirás música e apenas isto. Enquanto que há um meio de detê-la parada e eterna, cada nota como uma estátua dentro de ti mesmo.
Não a executes, é o que deves fazer. Não a escutes e a possuirás. Não ames e terás dentro de ti o amor. Não fumes o teu cigarro e terás um cigarro aceso dentro de ti. Não ouças a Quinta Sinfonia de Beethoven e ela nunca terminará para ti.
Eis como eu me redimo de lançar pedras, tão sempre... Eis que eu te ensinei a não matar. Erige dentro de ti o monumento do Desejo Insatisfeito. E assim as coisas nunca morrerão, antes que tu mesmo morras. Porque eu te digo, ainda mais triste que lançar pedras é arrastar cadáveres.
E se não puderes seguir meu conselho, porque mais ávida que tudo é sempre a vida, se não puderes seguir meus conselhos e todos os programas que inventamos para nos melhorar, chupa umas pastilhas de hortelã. São tão frescas.
Tua Idalina
Conto retirado do livro: Primeiras Histórias, de Clarice Lispector.
Em sua profundidade, este texto nos diz muito sobre a Vida, sobre Amar e se Amar! Deixo aqui, com a esperança que você leia com carinho, com o cuidado que Clarice Lispector aponta ao longo do conto. É de uma beleza estonteante! Ah!!! Clarice, nossa querida Clarice Lispector.
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Eis como eu me redimo de lançar pedras, tão sempre... Eis que eu te ensinei a não matar. Erige dentro de ti o monumento do Desejo Insatisfeito. E assim as coisas nunca morrerão, antes que tu mesmo morras. Porque eu te digo, ainda mais triste que lançar pedras é arrastar cadáveres.
"Porque eu me enganei quando há tempos imaginei como real minha antiga vontade de "salvar a humanidade"?